Revista 'Nature' publica controverso estudo sobre vírus da gripe aviária - H5N1
Artigo revela como os cientistas conseguiram fazer com que o vírus seja transmissível entre mamíferos, tornando-o potencialmente mais letal
Modelo digital mostra o vírus H5N1, causador da gripe aviária
A revista britânica Nature publicou finalmente, nesta quarta-feira, o estudo que mostra como cientistas produziram uma versão mutante do vírus da gripe aviária, o H5N1, tornando-o infectável entre mamíferos. O artigo foi publicado depois de meses de negociações. Em dezembro de 2011, um painel de especialistas que aconselha o governo americano havia recomendado que partes sensíveis do estudo não fossem publicadas, pois as informações poderiam ser usadas para a fabricação de armas biológicas. No fim de março, contudo, o painel de especialistas voltou atrás, e o artigo foi encaminhado para publicação. Outro estudo parecido deverá ser publicado na revista Science nos próximos dias.
O H5N1 é um vírus que pode matar seres humanos, mas não consegue se espalhar facilmente entre pessoas. Os cientistas queriam entender se o micro-organismo teria o potencial para iniciar uma pandemia, ou seja, ser transmitido por via área entre seres humanos — atualmente, apesar de sua alta letalidade, ele só é transmitido pelo contato com carne contaminada de aves; a transmissão de humano para humano é raríssima. A pesquisa divulgada agora foi conduzida pelo virologista japonês Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Wisconsin-Madison e da Universidade de Tóquio.
A equipe de Kawaoka provocou a mutação de um gene chamado hemaglutinina (HA), responsável pela produção da proteína que o vírus utiliza para se encaixar nas células hospedeiras. Do mesmo modo que os vírus da gripe desenvolvem novas características realizando a troca de genes, os pesquisadores combinaram o HA com outros sete de um vírus da gripe altamente transmissível em humanos, o H1N1, o mesmo que causou uma pandemia em 2009.
Os pesquisadores descobriram que quatro mutações são suficientes para que o H5N1 consiga se espalhar entre furões separados por gaiolas, indicando que a transmissão do vírus se dá por via aérea. É assim que a maioria dos vírus da gripe comumente se espalha entre os humanos. Três dessas mutações permitem o HA se encaixar nos receptores das células dos mamíferos, e a quarta estabiliza a proteína.
Pandemia — O estudo mostra que o H5N1 natural pode estar a apenas uma mutação distante de se espalhar entre seres humanos. Isso porque algumas cepas do vírus no Oriente Médio já conseguem reconhecer receptores de células humanas. Contudo, elas não são estáveis. Se essa cepa atingir a quarta mutação descrita no artigo publicado na Nature, é possível que haja uma pandemia da gripe aviária. "A descoberta de que a HA precisa estar estável para ser transmissível pelas vias aéreas de seres humanos é uma descoberta importante", disse à Nature a virologista Wendy Barclay, do Imperial College London.
Para verificar se o H5N1 poderia reconhecer os receptores de células humanas, a equipe de Kawaoka realizou mutações aleatórias na proteína HA. Os cientistas criaram 2,1 milhões de cepas diferentes. Apenas uma reconheceu os receptores humanos. Depois disso, os pesquisadores fundiram o gene HA mutante com outros sete encontrados na cepa do H1N1 que causou a pandemia em 2009. O vírus híbrido evoluiu ainda mais depois que a equipe infectou furões, considerados o melhor modelo animal para se estudar a gripe humana.
Depois de seis dias, um dos animais tinha em seu organismo muito mais vírus que os demais, algo na ordem das dezenas de milhares. Depois de sequenciar essa cepa específica do vírus, os pesquisadores descobriram que ele adquiriu uma terceira mutação no HA. Foi essa mutação que permitiu, pela primeira vez, a transmissão do vírus entre os furões. Animais em gaiolas próximas também ficaram doentes. Colhidas algumas amostras, os cientistas verificaram que alguns dos vírus transmitidos pelo ar tinham uma quarta mutação no HA. Essa alteração melhorou ainda mais a capacidade do vírus de se transmitir entre os bichos.
Baixa letalidade — A boa notícia é que o vírus não matou nenhum dos furões infectados, e sua transmitissão é mais lenta que a cepa do H1N1 da pandemia de 2009. Além disso, ele causou menos danos severos ao pulmão e é vulnerável tanto ao remédio Tamiflu como a um protótipo de vacina contra o H5N1. Os pesquisadores ainda não sabem se a transmissão do vírus entre seres humanos é tão bem-sucedida quanto em furões, nem se as quatro mutações do HA dariam à versão natural do vírus as mesmas habilidades. Isso porque os sete genes do H1N1 inseridos no vírus híbrido podem ter contribuído para a transmissão pelas vias aéreas.
De acordo com Kawaoka, a maior descoberta está na natureza das quatro mutações que permitem a transmissão do vírus pelas vias aéreas. Para lançar o material genético, os vírus da gripe precisam fundir suas membranas com as das células hospedeiras. A proteína HA inicia esse processo ao mudar de forma em resposta ao nível de acidez da célula. Contudo, as três mutações no receptor do vírus produzido por Kawaoka fazem essa transformação acontecer prematuramente, reduzindo a habilidade do vírus em se espalhar. A quarta mutação, chamada T3181I, estabiliza a proteína, fazendo com que ela mude de forma na hora certa. Além disso, ela faz o vírus mais resistente a altas temperaturas. Todas as quatro mutações são necessárias para que o vírus reconheça a célula correta e a infecte efetivamente.
Controvérsia — O artigo só foi publicado na Nature depois de um longo debate entre a comunidade científica, o governo americano e a imprensa. Em novembro de 2011, um painel de especialistas que aconselha o governo americano pediu que tanto a revista Science quanto a Nature retirassem partes sensíveis das duas pesquisas (o artigo da Science, conduzido por outros cientistas, ainda não foi publicado) que poderiam ser usadas por terroristas para a fabricação de armas biológicas.
Muitos cientistas protestaram, inclusive os autores, dizendo que os benefícios da publicação eram maiores que os riscos. O trabalho poderia ajudar na fabricação de uma vacina contra o vírus. Muitos consideraram que a não publicação violaria a liberdade acadêmica. O painel de especialistas, então, pediu que se encontrasse uma forma de disponibilizar a parte sensível do artigo apenas para pesquisadores legítimos. Contudo, logo ficou evidente que não haveria jeito de se fazer isso em escala global.
Em entrevista à rede britânica BBC, Philip Campbell, editor-chefe da revista Nature, comentou sobre o dilema de publicar o controverso estudo. "Se tivéssemos optado pela censura, como decidiríamos quais pesquisadores deveriam receber as informações sensíveis? Como poderíamos garantir, realisticamente, que essa informação ficaria restrita ao ambiente universitário?"
O estudo se mostrou útil ao revelar vários mecanismos da transmissão do H5N1 que eram desconhecidos, como a importância da estabilidade da proteína produzida pelo gene HA para a transmissão eficiente entre os furões. "O estudo de Kawaoka aumenta substancialmente nosso conhecimento sobre quais propriedades virais controlam a transmissão por via áerea dos vírus da gripe", disse Vincent Racaniello, professor de virologia na Universidade de Columbia, em seu blog. "A visão de que o estudo proporcionaria a criação de armas biológicas é altamente especulativa e fundamentalmente errônea."
O vírus da discórdia - cronologia
Variante mais mais perigosa do vírus da gripe aviária, criado por virologistas nos Estados Unidos e na Holanda, provocou controvérsia entre cientistas e autoridades
O Painel Científico Consultivo para Biossegurança Nacional (National Science Advisory Board for Biosecurity), solicita que as revistas Science e Nature não publiquem detalhes de um estudo sobre uma nova versão do vírus da gripe aviária, mais perigosa, transmissível entre mamíferos.
Os cientistas que criaram uma versão geneticamente alterada e potencialmente transmissível entre humanos do vírus da gripe aviária H5N1 decidem interromper as pesquisas por 60 dias. Em um artigo publicado nas revistas científicas Nature e Science, eles afirmam que querem dar tempo "aos governos e organizações para discutir esse tipo de pesquisa."
Em comunicado publicado nas revistas Science e Nature (periódicos aos quais os artigos foram submetidos para veiculação), o Painel Científico Consultivo para Biossegurança Nacional (National Science Advisory Board for Biosecurity, NSABB), órgão do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, afirma que a divulgação dos estudos colocaria em risco a biossegurança e a saúde pública mundiais.
Depois de recomendar a não-publicação dos artigos, o Painel Científico Consultivo para Biossegurança Nacional (National Science Advisory Board for Biosecurity, NSABB), órgão do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, volta atrás e afirma que a divulgação dos estudos revisados podem ser uma boa forma de compreender melhor a transmissão do vírus e e melhorar a biossegurança no país.
02 de maio de 2012
Depois de meses de discussões, enfim a revista Nature publica o artigo na íntegra, explicando os detalhes do desenvolvimento da variante do vírus capaz de ser transmitida pelo ar entre mamíferos. Virologistas elogiam a publicação por esclarecer mecanismos ainda não conhecidos sobre a transmissão do H5N1.
Fonte: Veja