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Por que não conseguimos combater as superbactérias? Ianomâmis podem ter a resposta

Pesquisa revela que índios apresentam em seu corpo o conjunto de bactérias mais rico do planeta e, mesmo sem contato com antibióticos, apresentam resistência a alguns deles. Juntas, essas características podem ajudar os cientistas a descobrir por que o medicamento não faz efeito em alguns de nós

Em alguns ianomâmis nem mesmo medicamentos de última geração, capazes de combater um amplo espectro de bactérias, faria efeito

Trinta e quatro índios ianomâmis de uma tribo isolada da Venezuela podem ser a chave para compreender por que nosso corpo não consegue combater algumas superbactérias. Mesmo sem nunca terem tomado remédio, esses ianomâmis apresentam resistência a antibióticos criados pelo homem. Em alguns deles, nem mesmo medicamentos de última geração, capazes de combater um amplo espectro de microorganismos, fariam efeito. Essa característica, revelada por uma pesquisa publicada no periódico especializado Science Advances, na última sexta-feira, pode ajudar a ciência a descobrir a origem da grande resistência a antibióticos humana.

Resistência natural - A aldeia ianomâmi, que conta com 54 habitantes, foi localizada em 2008 e, no ano seguinte, os pesquisadores venezuelanos colheram amostras das bactérias da boca, da pele e das fezes dos índios, entre 4 e 50 anos. Esses habitantes jamais haviam tido contato com pessoas de fora de sua etnia. O objetivo dos cientistas era mapear seu microbioma, o conjunto de bactérias que compõe o corpo e tem papel importante na imunidade e prevenção de doenças. Eles queriam desvendar como se comportam os microorganismos em pessoas que vivem em condições semelhantes aos ancestrais humanos e conferir sua resistência a antibióticos.

Por meio de extensas análises, os pesquisadores liderados pela Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, descobriram que os ianomâmis têm o microbioma mais variado do planeta. É quase duas vezes mais rico em espécies que o de um americano e supera outros povos nativos da Amazônia e da África. No entanto, os testes com medicamentos mostraram que eles também têm genes de resistência a pelo menos oito tipos de antibióticos - apesar de jamais terem tomado um. Alguns não apresentavam respostas nem mesmo aos medicamentos de amplo aspectro, o tipo de antibiótico que usamos para combater bactérias resistentes ou superbactérias, como a Escherichia coli, uma das principais causadoras de infecções urinárias (o segundo tipo de infecção mais comum em todo o mundo).

No entanto, nos índios, nem todos os genes de resistência estão na mesma bactéria. Isso acontece porque só o uso constante de antibióticos, como fazemos nas cidades, seria capaz de provocar a seleção sistemática das bactérias resistentes a medicamentos. Essa também é uma das explicações para um microbioma tão variado: sem o acesso aos medicamentos, a variedade de espécies de microorganismos se mantém maior.
"Sabemos que alguns genes de resistência a antibióticos podem ser desenvolvidos naturalmente. No entanto, tal resistência em uma tribo isolada não seria esperada e é preocupante. Esses índios podem ser a chave que vai nos ajudar a desvendar como surge esse processo e auxiliar na criação de antibióticos mais eficazes", afirma o infectologista Antonio Carlos Pignatari, diretor do Laboratório Especial em Microbiologia Clínica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ajuda indígena - De acordo com os pesquisadores, uma das explicações para a resistência pode ser a troca entre as bactérias humanas e bactérias do solo, onde genes de resistência a antibióticos são encontrados. Outra alternativa, mais remota, seria a recepção dos genes resistentes por meio de objetos ou do contato com populações que já apresentavam essa resistência.
A possibilidade da resistência natural a antibióticos não é novidade para os cientistas. Afinal, o primeiro antibiótico, a penicilina, foi descoberto por acaso em 1928 pelo biólogo escocês Alexander Fleming. Ele descobriu que um fungo encontrado no bolor tinha a capacidade de matar o Staphylococcus aureus, que causa infecções de pele. Desde então, grande parte dos antibióticos que fabricamos são derivados de bactérias encontradas na natureza e, principalmente, no solo.

"Alguns genes de resistência podem surgir a partir do contato bactérias naturais, principalmente pelo solo ou pela água. A troca de informações genéticas do homem com o ambiente é constante e o microbioma é modificado pelo que comemos, pelos produtos de limpeza que usamos e pelos medicamentos", explica Pignatari. "No entanto, ainda não sabemos ao certo como funcionam os mecanismos que conferem a resistência natural aos genes e é nisso que os ianomâmis poderão nos ajudar.

Microbioma - Em nosso corpo, há dez bactérias para cada célula. Juntos, esses 100 trilhões de micro-organismos pesam em torno de 2 quilos - cerca de 500 gramas a mais que nosso cérebro. Em 2007, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) começaram o Projeto do Microbioma Humano, com o objetivo de mapear todas as bactérias de nosso organismo. Usando o conhecimento de sequenciamento de DNA do Projeto Genoma, também do NIH, 80 instituições de pesquisa mostraram que somos formados de mais bactérias que células. Essas primeiras informações, publicadas em 2012, serão compiladas e decifradas até o fim de 2015, quando termina o programa que já consumiu 153 milhões de dólares (cerca de 350 milhões de reais) do governo americano.


Acredita-se que esses minúsculos, mas poderosos, micróbios poderão, em menos de uma década, transformar o diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças como obesidade, câncer, diabetes ou transtornos mentais. E também ser a solução para a resistência a antibióticos, problema que, desde 2014 preocupa todo o mundo. Nos Estados Unidos, a batalha perdida pelos antibióticos mata mais que a aids - são 23 000 mortes anuais, ante 15 000 causadas pelo HIV.
No caso dos ianomâmis, algumas bactérias raras em outras populações podem ajudar a combater doenças. Uma delas, por exemplo, pode diminuir os riscos de pedras nos rins. Por isso, os pesquisadores afirmam no artigo a necessidade de caracterizar o microbioma e seus genes de resistência em populações que têm estilos de vida ancestrais, não afetados pelas práticas modernas.

"A caracterização da resistência nessas pessoas pode também apoiar a criação e desenvolvimento de antibióticos que minimizem a resistência pré-existente. As causas e consequências das mudanças no microbioma precisam ser compreendidas para que seja possível reverter a tendência global de doenças metabólicas e inflamatórias", concluem os cientistas

Fonte: Veja